quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O que Alckmin fala e o que faz com os menores da Fundação Casa

O governador de São Paulo defende penas mais duras para adolescentes, mas a Fundação Casa, para maquiar a superlotação, solta a maioria dos menores com menos de um ano de internação

menores Fundação Casa
Para Ministério Público, superlotação tem sido critério usado pelo governo do Estado para soltar adolescentes em vez de priorizar atendimento socioeducativo
Há menos de quatro meses, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) foi à Brasília pedir pessoalmente a aprovação de um projeto de lei que aumenta de três para oito anos o tempo máximo de pena para menores infratores no Brasil. A proposição, apesar de popular com uma fatia significativa do eleitorado, contraria as diretrizes estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, ironicamente, a própria política aplicada por seu governo. Enquanto Alckmin pede “limites” aos adolescentes envolvidos em crimes, a Fundação Casa, gerida pelo tucano, está soltando menores infratores de forma sistemática para evitar a superlotação da instituição, segundo suspeita do Ministério Público.

Dados obtidos com exclusividade pela reportagem de CartaCapital revelam que, atualmente, o tempo médio de permanência de um jovem na Fundação Casa é de 232 dias, pouco mais de 7 meses, menos da metade do período total permitido pela atual legislação, de 36 meses. Isso em um universo de aproximadamente 9,6 mil adolescentes, entre os de internação comum, provisória e internação sanção. Nos casos de internação de semiliberdade, na qual os menores apenas dormem em alguma instituição vinculada à Fundação Casa, o tempo médio é de 133 dias, ou cerca de quatro meses. As informações foram repassadas pela própria Fundação Casa a pedido da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude.

A possível explicação para a diferença entre o discurso do governador e a sua postura na prática é um problema que já foi denunciado pela reportagem e assola o sistema: a superlotação. “Nós temos tido cada dia mais indícios de que o tempo de permanência é curto e dificilmente supera sete ou oito meses justamente em razão de uma política de contingenciamento das vagas”, afirma o promotor Tiago de Toledo Rodrigues. “A liberação é muito mais pautada pela política de abertura de vagas do que pelo processo socioeducativo”. Em abril, CartaCapital mostrou que uma em cada três unidades da Fundação Casa está superlotada.

O problema não é pontual, como mostram os números. Em agosto, a Fundação Casa recomendou a soltura de 166 menores que estavam internados por algum envolvimento com a prática criminosa. Desse total, 93,9% estavam cumprindo medida socioeducativa há menos de um ano. Isso significa que apenas 10 deles tinham ultrapassado o período de um ano no sistema. No mês anterior, em julho, a instituição considerou que deveriam ser libertados outros 273 meninos, mas só 30 deles tinham mais de 12 meses de internação. “Aí vem a demagogia de falar em aumentar o tempo máximo de internação. Num quadro em que não usamos nem metade do tempo de internação atual”, critica o promotor Pedro Eduardo de Camargo Elias.

O retrato evidenciado pelos números não quer dizer que prender os adolescentes por mais tempo seja a solução, até porque o ECA defende medidas de internação aplicadas pelo período mais breve possível. Ocorre que o governo de São Paulo não oferece, segundo especialistas, a contrapartida – a reeducação dos infratores. “As medidas privativas de liberdade têm de ser breves desde que o atendimento socioeducacional necessário também seja oferecido. Caso contrário, se torna uma mera contenção”, alerta o promotor Santiago Miguel Nakano. Por isso, falar em endurecimento das penas é “estelionato eleitoral”, na opinião do advogado e membro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca) Ariel de Castro Alves. “O adolescente só deve voltar ao convívio social na medida que ele se ressocializar e progredir. (Aumento de pena) é puro oportunismo e demagogia, utilizado na véspera da eleição para cometer um estelionato eleitoral”.

“Girar a casa”

A prática de liberar os adolescentes o mais rápido possível independentemente do progresso do atendimento socioeducativo é percebida até pelos adolescentes. Segundo funcionários da Fundação Casa ouvidos pela reportagem, mas que pediram para ter as identidades preservadas por medo de represálias, os próprios menores infratores sabem que em aproximadamente seis ou sete meses serão libertados, o que atrapalha o processo de ressocialização. Além disso, são considerados bons funcionários e diretores aqueles que fazem “a casa girar”, explica um funcionário da instituição. “Há uma pressão das direções na área psicossocial. Eles estão sendo forçados a fazer relatórios para que liberem os meninos antes do momento”, diz um funcionário.

Um dos reflexos dessa política seria a grande quantidade de menores que voltam ao mundo do crime após ficarem internados na instituição. Apesar do índice oficial de reincidência da Fundação estar em torno de 17%, o Ministério Público estima que o dado real seja de 50%. “O índice de reincidência da Fundação Casa não é de fato um índice de reincidência. A Fundação Casa contabiliza reincidência nos casos em que há internação com posterior internação. Isso não tem nada a ver com reincidência", diz Tiago de Toledo Rodrigues. Para o MP, a contagem deveria ser feita pela quantidade de atos infracionais, que nem sempre geram internação. "Nós temos adolescentes que estão internados pela primeira vez, mas já é o terceiro o quarto ato infracional de tráfico de drogas. Esse adolescente é considerado primário pela Fundação Casa”, afirma.

Coincidentemente, o discurso de Alckmin em favor do endurecimento das medidas tem como argumento justamente evitar o aumento na reincidência entre adolescentes que cometem crimes mais graves. “Tudo o que não tem limites acaba sendo fator favorável à reincidência, como a internação por apenas três anos, qualquer que seja o crime cometido”, disse o governador a jornalistas em novembro de 2013. Mas o percentual de menores que comete atos infracionais classificados como hediondos não representa nem 1% do total. As informações obtidas pelo Ministério Público revelam ainda que a grande maioria dos menores está internada por roubo qualificado (43,63%) e tráfico de drogas (37,48%), delitos considerados comuns. Enquanto que adolescentes envolvidos com latrocínio e homicídio doloso qualificado são, respectivamente, apenas 0,80% e 0,77% do total de internados na instituição.

“Surgem casos de internação com período maior do que sete meses ou um ano? Surgem. Invariavelmente, na sua ampla maioria, são casos que coincidentemente tiveram repercussão na imprensa", diz Rodrigues. "No entanto, há casos graves que não são noticiados na imprensa, e aí esses menores são alvo do período médio de internação. Isso sugere que o tratamento atual é um tratamento padronizado”, conclui o promotor.


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