domingo, 9 de novembro de 2014

Menino de 15 anos e uma vida na rua

Guilherme (nome fictício) é um menino de 15 anos com direito a uma pensão de R$ 2,7 mil para a vida toda. Mas vive sem lar. Sua ruína está justamente no dinheiro, disputado por parentes em guerra, enquanto o garoto, viciado em drogas, foragido da Justiça, perambula pelas ruas ou na casa de amigos na zona norte de Rio Preto. A saga de Guilherme escancara as consequências mais macabras da implosão de uma família pelas drogas e pela ganância. Que começa muito antes dele nascer, em 1999. Seus pais eram viciados em crack, e moravam na zona do meretrício, no Jardim Paraíso. Perderam a guarda do bebê para a avó materna, bibliotecária no Eldorado.

A avó morreria de problemas cardíacos quando Guilherme tinha apenas três meses. Deixou ao único neto a gorda pensão. Já o pai, A.J., morreria assassinado um ano depois, aos 18 anos, durante tentativa de assalto. Com a mãe afundada nas drogas, Guilherme passou a morar com uma tia-avó, a faxineira L.B., no Jardim Simões.

Foram anos que o jovem prefere apagar da mente. Apanhava com frequência, com chinelo, cinto e fio de cobre. Todo dia era obrigado a tomar banho no quintal, junto ao cachorro. Guilherme altera a voz quando fala da tia. "É uma maldita. Deus ainda vai cobrar dela o que fez comigo", disse ao Diário por telefone na semana passada. L.B. admite ter agredido o garoto. "Bati sim, para educá-lo. Nunca espanquei."

Enquanto maltratava o sobrinho-neto, L.B. gastava a pensão. Segundo o Conselho Tutelar, comprou moto para o namorado, fez cirurgia plástica. À reportagem, a faxineira confirmou os banhos no quintal, mas que eram iniciativa dele. "Ele lavava o quintal para mim e molhava o corpo antes de ir para a escola." Ela garantiu que a cirurgia foi com dinheiro dela e admitiu ter feito o consórcio da moto com o dinheiro de Guilherme, mas afirmou que o veículo era para o menino.

Vergões

Em 2011, quando tinha 12 anos, Guilherme apareceu na escola com vergões pelo corpo. Marcas de mais uma surra. Acionado, o Conselho Tutelar retirou o menino da casa de L.B. "Eu me lembro que toda a roupa dele cabia em uma sacolinha de supermercado", diz a conselheira Dayani Aparecida Escroque. A Justiça repassou a guarda para o tio e padrinho, J.M.T., 39 anos, que mora no bairro Duas Vendas. E as surras continuaram, conforme admite o rapaz, irmão do pai assassinado. "Bati sim algumas vezes, porque ele aprontou na escola." Trocou a convivência com o tio pela casa da então namorada do padrinho, mas dois meses depois, no fim do ano passado, foi para a casa da avó paterna, M.A.T., 55 anos, que passou a receber a maior parte da pensão do menino, repassada pelo tio, ainda o titular da guarda.

Nessa época, Guilherme já fumava maconha. No início do ano, abandonou os estudos na escola Cenobelino de Barros Serra, Parque Industrial. E mergulhou nas drogas e no crime. Em maio, acabou flagrado pela Polícia Militar participando de um assalto com um primo. Foi entregue para a avó. Dois meses depois, novo flagrante, dessa vez vendendo pedras de crack no solo. A Justiça determinou que ele fosse para o regime semiaberto da Fundação Casa. Mas, antes disso, há dois meses, fugiu.

A avó e o tio de Guilherme, mãe e filho, além da faxineira, tia-avó, se atacam. Acusam um ao outro de só ter interesse na pensão do garoto. "Se ele está para a rua hoje é por culpa da minha mãe, que nunca quis saber dele. Quando estava aqui em casa, levava na rédea curta. Mas ela só quer torrar o dinheiro dele no bar, porque é alcoólatra", diz o tio. A avó, mãe dele, nega. "Tomo minha cerveja no fim do dia mas não sou alcoólatra." E critica o filho. "Eu vi ele batendo no menino. Nunca gostou dele, tanto que não quer mais ele. Quer o dinheiro. Só eu me preocupo com ele." Já a tia-avó critica ambos. "Se o garoto está assim hoje é por causa deles, que nunca se importaram com o menino."

Encontro

Há três semanas, Guilherme telefonou para o tio. Combinaram um encontro no Solo Sagrado. "Ele me pediu dinheiro, disse que era para comprar comida. Eu dei R$ 800. Também pediu para não dar mais parte da pensão para a minha mãe", diz J.M.T.. Guilherme confirma o pedido. "Ela bebe todo dia, tava torrando todo o meu dinheiro." Diz ter medo de ser pego pela polícia e "ir pra Febem", por isso não revela onde está. "Fico em casa de amigo, senão é na rua mesmo." Admite o vício em drogas - "só maconha" - e, às vezes, a fome, horror maior da vida na rua. "Tem dia que aperta, mas a gente dá um jeito. Cada dia depois do outro. Só não quero mais saber desse povo interesseiro, que só quer da pensão." A conselheira Dayani resume o drama do jovem Guilherme. "Ele tem dinheiro mais que suficiente para viver bem, mas não tem o amor de ninguém. Tem tudo e não tem nada."




Guilherme Baffi
A vida de J.H. começou a mudar com tratamento na ONG Só Por Hoje: “Estou em outra”

Conselho tem 130 casos, maioria por droga 

A cada dois dias, um menor em situação de rua é atendido pelo Conselho Tutelar na zona norte de Rio Preto. Foram 130 casos atendidos de janeiro a outubro deste ano pelos conselheiros na parte norte da cidade - o Conselho Sul afirmou não dispor desse dado. Não há na cidade uma padronização de atendimento à criança e adolescente em situação de rua. Enquanto o Conselho Tutelar classifica nessa condição menores que passam a maior parte do tempo na rua, só indo eventualmente à casa dos pais ou avós, a ONG Só por Hoje só classifica o jovem como "de rua" se os vínculos familiares forem totalmente perdidos. "Há três anos não há nenhum menor nessa situação em Rio Preto. Os moradores de rua hoje na cidade são todos adultos", garante a coordenadora-geral da Só Por Hoje, Edna Thomé de Souza. 

Já o conselho, quando encontra adolescentes na rua, devolve à família ou, caso esse retorno coloque o jovem em risco ou situação de extrema vulnerabilidade, encaminha ao Teia ou à Só por Hoje. Para a conselheira Stela Atanázio, a maioria dos menores na rua é usuária de droga, principalmente o crack, e saiu de casa devido à miséria ou negligência dos pais, muitos deles também viciados. 

Pesquisa 

Pesquisa feita no ano passado pela ONG Criança Não é de Rua aponta que a maioria dos menores (48,6%) saiu de casa devido aos "vínculos familiares fragilizados", seguido de "miséria" (30,2%) e "drogas" (26,8%). Além disso, 75% sobrevive com esmolas, e 48% gasta o dinheiro com drogas. Entre os entorpecentes, predominam a maconha (31%), o crack e a cola de sapateiro (23,4% cada). Para Manoel Torquato, coordenador da ONG Criança Não é de Rua, em Fortaleza, houve uma redução do número de crianças (menores de 12 anos) na rua, mas a quantidade de adolescentes ainda preocupa. "É quando os conflitos familiares se acentuam e vem o chamariz das drogas", diz. 

Estado omisso 

Os estragos físicos e psicológicos nesse jovem são intensos, explica Torquatro. "Eles estão expostos a todo tipo de violência." O especialista critica a falta de uma política nacional para combater o problema. "Não há verbas específicas no Orçamento da União, além de conselhos tutelares sucateados e abrigos lotados. Esse circuito fragilizado frustra o adolescente, porque não consegue resolver o seu problema." 

ONG mudou vida de J., jardineiro 

O jardineiro J.H.A.S., 19 anos, conhece bem o submundo das ruas. Com mãe dependente química e pai assassinado, ele e os três irmãos foram morar com a avó, primeiro em Fronteira (MG), depois no Marisa Cristina, zona norte de Rio Preto. Por influência dos tios, o jovem começou a usar drogas - maconha e crack - e saiu de casa. Passou mais de um ano vivendo de esmolas nas ruas da cidade. Perdeu as contas do momento em que passou fome. 

A vida de J.H. começou a mudar há seis anos, quando fez tratamento contra a dependência química na ONG Só Por Hoje. Saiu ano passado e recentemente ganhou seu primeiro emprego com carteira assinada. Conclui neste ano o ensino supletivo e planeja cursar marcenaria. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário