Além dos problemas causados pelo avanço das facções dentro do sistema socioeducativo, servidores que relatam que o trabalho dentro da Fase tem sido prejudicado pela superlotação e a falta de trabalhadores nas unidades.
Uma das consequências mais graves seria o risco para a integridade física deles.
“No domingo do último Gre-Nal (dia 3), um colega foi rendido no Case Padre Cacique. Ele trabalhava sozinho na área de atendimento especial com sete guris. No mínimo tinha que ter dois agentes, mas lá é praxe ser um só. Era um dia que tinha pouquíssimas pessoas trabalhando, nem tinha chefe de equipe. Ele foi abrir o dormitório e os dois guris pularam em cima dele. Queriam a chave. Um gravateou ele até que ele desmaiou. Pegaram a chave e libertaram os outros”, relata Alessandra Maia, agente do Centro de Atendimento Socioeducativo Regional (Case) de Porto Alegre I.
“O pior é que não tinha pessoas, não tinha trabalhadores. Quem controlou a situação foi outro grupo de adolescentes que entrou nesse espaço e resgatou o colega que estava machucado”, complementa Edgar Costa, diretor do Semapi, sindicato que representa trabalhadores de fundações estaduais.
Oficialmente, a direção da Fase disse que o agente sofreu apenas escoriações leves, mas os servidores negam. “Ele teve o lábio arrebentado, quatro dentes quebrados, ficou com o rosto horrível. Esse é o risco que se sofre de trabalhar em número insuficiente. Não acontece toda hora, felizmente”, diz Alessandra.
Segundo dados atualizados pela Fase no dia 14, o sistema socioeducativo conta atualmente com 752 vagas para regime fechado – 453 na Capital e 299 no interior – e uma população de 1.252 internos – 636 na Capital e 616 no interior -, o que representa um déficit de 517 vagas. Já em unidades de semiliberdade, há capacidade para 192 jovens para uma população de 113, o que representa uma sobra de vagas.
Do ponto de vista funcional, o déficit estaria em quase 400 profissionais. “O nosso plano de cargos prevê 1642 vagas. O déficit atual é de 380 trabalhadores. Mas essas 1642 vagas é para atuar de acordo com a capacidade, não com a superlotação”, afirma Edgar. O último concurso para a Fase foi realizado em 2012, quando foram chamadas 215 pessoas, em um universo de mais de 1 mil aprovadas.
Jair Silveira, agente da unidade de Comunidade Socioeducativa (CSE), que abriga os menores de chamado perfil mais agravado e já reincidentes no crime, afirma que o cotidiano dos trabalhadores da Fase está cada vez mais complicado em razão do aumento do número de jovens internados no sistema e de atividades a serem realizadas, enquanto o quadro funcional permanece sem novas contratações desde 2012.
Ele diz que sua unidade hoje tem capacidade para 22 internos e conta com 25 no total, o que não é considerado excessivo. No entanto, diz que isto ocorre apenas porque houve diminuição da população da casa após um recente motim. “O CSE é uma ilha no sistema”, afirma.
Em sua unidade do CSE, trabalham atualmente entre 6 e 7 agentes por turno, o que está dentro da média preconizada pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) de um agente para cada cinco internos.
Já no vizinho Case POA 1, há 125 internos para apenas 62 vagas. Como em média são 20 funcionários da Fase por turno trabalhando na unidade, o excesso de internos já dificulta o trabalho dos agentes. “Tem 20, mas é no papel. Se tu conta pessoas de folga, atestado, dificilmente dá 20. Dificulta a rotina do dia a dia, o acompanhamento para as aulas, o atendimento técnico, o pátio, mas principalmente a questão de segurança”, diz Alessandra Maia. “Tu precisa de olhos para enxergar a movimentação, que é grande. A falta de funcionários compromete a segurança, porque, se dá alguma briga, um guri que vai agredir funcionários, tu vai ter vários outros soltos para um número reduzido de adultos”, complementa.
Jair acrescenta que, mesmo para atividades banais, como o controle de horário de banhos, em alguns momentos há falta de funcionários e isso pode gerar conflitos. “Se tu não tem um funcionário fazendo a gestão do tempo de banho. Em vez de ser cinco minutos, vai para 8, 10. E aí essa cobrança gera os embates, se o corpo técnico não está preparado fica tenso”, diz.
No Case de Novo Hamburgo, a superlotação é ainda maior. Com capacidade para 60 internos, conta atualmente com 193. Por outro lado, Edgar diz que a média de trabalhadores não passa de 16 por turno. “Pelo que preconiza o Sinase, teria que ser no mínimo 40”, afirma, salientando que realidade semelhante são vividas pelas unidades de Caxias do Sul e de Caxias. “Isso causa o descontrole geral da unidade. Cada vez mais tem sido frequente as unidades perderem o controle dos guris. É com pedalaços, agressão a funcionário, manifestações de tumulto generalizado”.
Os servidores questionam ainda a decisão do governo Sartori de cortar as horas extras de todos os funcionalismo público. “A gente não quer hora extra, queremos gente para trabalhar. Agora, se a hora extra é necessária, tem que ter. Não dá para ter um discurso hipócrita. Hora extra é oneroso para o Estado? É. Mas no momento que não tem gente suficiente para trabalhar, tem um numero excessivo de internos nas unidades, precisa de horas extras, não dá para simplesmente cortar como se fosse uma coisa acessório”, diz Alessandra.
Eles ainda reclamam que, apesar do déficit no quadro funcional, a direção da Fase exige a manutenção das atividades, como as escolas que funcionam dentro das unidades. “Daqui a pouco tu tem 1 ou 2 colegas cuidar uma escola, quando tu deveria ter no mínimo três, que a própria escola pede para a Fase”, salienta Jair. “Não tem como fazer o atendimento que se pretende sem investir, que é o contrário do que essa gestão está fazendo, que é corte, corte, corte. Tem que haver concurso, tem que chamar pessoas”, pondera Alessandra.
Por que há superlotação?
Diretor da Fase, Robson Luis Zinn, presidente da Fase (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo) reconhece que há um problema de superlotação nas unidades da Fase, mas avalia que isso não é um problema apenas da instituição. “Nós não somos os reguladores das vagas do sistema”, diz.
Segundo ele, nos últimos três anos, o número de internações cresceu 15%. Por outro lado, há 12 anos não são abertas novas vagas para a Fase. Ele elenca três razões para o aumento de internações: cobrança da sociedade por maior punibilidade para menores infratores, ausência de critérios objetivos para ocupação das vagas e falta de políticas de meio aberta oferecidas pelas prefeituras. “Muitas vezes tu não onde botar o guri para cumprir medidas socioeducativas e acaba internando ele”, diz.
Zinn avalia que a internação em regime fechado deveria se limitar a menores que cometeram infrações graves, mas, na prática, o que aconteceria é que muitos menores que estão internados foram apreendidos por roubo sem violência, tráfico de pequena quantidade de drogas e sem reincidência, porte ilegal de arma e outros delitos “menos graves”. Ele estima que 25% dos internos estariam nessa situação. “Se o menino cometeu homicídio, ele tem que estar comigo? Tem. Mas existem alguns delitos que, em tese, outras medidas deveriam ser aplicadas que não a internação”, pondera.
Promotor Júlio Alfredo de Almeida, 11º promotor de Justiça da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Porto Alegre, afirma que a sobrelotação é uma realidade da Fase que, por um lado, pode ser atribuída ao recrudescimento da violência no País e ao aumento da captação de jovens pelo tráfico de drogas, e, por outro, à falta de investimento no sistema socioeducativo. “As unidades são bastante antigas. Não há incremento de vagas”, diz.
No entanto, o promotor discorda da avaliação de que a Justiça tem culpa nessa superlotação e afirma que, ao menos em Porto Alegre, onde trabalha, são raros os casos de internação que possam ser consideradas indevidas. “O adolescente só está lá dentro depois de uma decisão judicial. Se eles estão lá dentro, já condenados, é porque o processo dele passou por um juiz de primeiro e de segundo grau”, diz, salientando, porém, que um sistema mais qualificado resultaria em uma menor necessidade de internação em regime fechado. “Se eu tivesse um sistema socioeducativo melhor qualificado no meio aberto e no meio fechado, menos adolescentes entrariam lá e permaneceriam menos tempo dentro do sistema”, afirma.
Ele salienta que há 12 anos não ocorrem obras na Fundação. Através de empréstimos firmados, em 2014, junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o Programa Integrado de Prevenção e Redução da Violência e Garantia dos Direitos da Juventude, o Estado tem garantido um aporte de cerca de R$ 50 milhões para a construção de três novas unidades (com capacidade para 60 jovens cada) em Osório, Santa Cruz do Sul, Viamão e para a reforma do complexo da instituição na Vila Cruzeiro. Esta última deve ficar pronta em 2017 e deve trazer uma escola de formação acadêmica, mas as novas unidades da Fase não devem ser concluídas antes de 2018 – prazo para conclusão da unidade de Viamão. Em Santa Cruz do Sul e Viamão ainda é preciso resolver problemas de regularização do terreno.
Uma das medidas que a Fase pretende adotar, até dezembro de 2017, é a instalação de um sistema de videomonitoramento em todas as unidades – financiado também por recursos do BID (R$ 3 milhões).
Por outro lado, assim como em outras áreas do funcionalismo público, a Fase está com a convocação de servidores congeladas. Zinn diz que já solicitou à Fazenda uma avaliação para o chamamento de aprovados em concurso de 2012, mas que esta decisão ainda está avaliação. Ele reconhece que o quadro atual é deficitário, mas indica que, se não houvesse superlotação, o número de servidores seria suficiente. “Se eu tivesse uma população de internos adequada para as minhas 750 vagas, não estaria faltando funcionário nenhum”, diz.
Por: Luís Eduardo Gomes
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