Em alguma esquina de São Paulo um menino olha de um lado para o outro à espera de algo que nem ele sabe o que é. Em minutos, o próximo cliente pode aparecer. Ou a polícia. Ele não sente medo porque “a vida do crime é assim mesmo”, conforma-se. Ele e outros milhares formam o exército do crime organizado, o monstro silencioso que alista jovens da cidade sem que ninguém saiba como pará-lo.
Nos ataques às bases da Polícia Militar no último mês, vários crimes tiveram a participação de menores, segundo a Secretaria da Segurança Pública. O coronel Roberval França, comandante-geral da PM, chegou a declarar que “é necessária uma revisão do nosso aparelho legal”, sugerindo que menores de 16 anos sejam mandados para a cadeia como criminosos comuns.
Dados da Fundação Casa de São Paulo, porém, apontam crescimento só no índice de internações por tráfico de drogas. Em 2006, esse número era de 21%. Em 2012, dobrou: 42% dos menores infratores foram flagrados traficando.
Poucas horas de trabalho por semana, salário muito acima do oferecido no mercado formal e um plano de carreira bem definido. São essas as oportunidades dadas pelos traficantes a jovens de 14 a 17 anos, a maior parte sem formação cultural e carente de estrutura familiar.
“Como vamos convencê-los a aceitar um subemprego ‘honesto’ em troca de um salário baixo, onde ele vai ser obrigado a pegar três conduções para ir e outras três para voltar e ainda exigir que ele vá para a escola pública à noite, onde nem mesmo a professora quer que ele aprenda algo?”, questiona o desembargador Antonio Carlos Malheiros, coordenador da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O campana, função mais baixa na hierarquia do tráfico (veja ao lado), ganha R$ 300 por semana. Em um mês, o adolescente arrecada o dobro do salário mínimo, além de outras “vantagens” por fazer parte do crime organizado. “Eles conquistam fama, meninas bonitas e o poder do revólver na cintura”, diz Malheiros.
Política punitiva/ A apreensão de traficantes adolescentes subiu. Em 2010, foram 23,6 mil flagrantes feitos pela Polícia Militar. No ano passado, 28,2 mil.
Para a cientista social Liana de Paula, especialista em adolescentes em confronto com a lei, os números refletem um novo olhar da polícia sobre esse fenômeno criminal. “A PM opta pela apreensão dos adolescentes como uma maneira eficaz de combater o crime, mas a estrutura do tráfico é mais complexa e exige um trabalho de inteligência que vai além”, afirma. Os menores são varejistas, facilmente substituíveis.
Berenice Gianella, presidente da Fundação Casa, acredita que a saída para controlar a participação dos menores no tráfico está em atendimentos sociais mais efetivos e não na política punitiva do Judiciário de São Paulo. Sobre a redução da maioridade penal, ela afirma que essa é uma “falácia”. “Se você questionar o jovem, ele dirá que está preso e não apreendido. Muitas vezes fica aqui mais tempo do que o maior na cadeia”, afirma.
Malheiros admite que essa é a visão da Justiça sobre o tema. “Resta ao Judiciário a tarefa triste de reconhecer a total falência do Estado e internar o menino pego com pequena quantidade de crack e uma arma. Ele vai ser punido, mas não significa que vai ser corrigido”, reconhece.
Castigos na infância provocam violência, conclui estudo da USP
Estudo da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), realizado em 11 capitais brasileiras, revelou que 70% dos 4.025 entrevistados, de todas as idades, apanharam na infância. Em 20% dos casos, as agressões eram frequentes. Os pesquisados que afirmaram ter sofrido agressões físicas quando crianças também foram os que escolheram a opção “bater muito” em seus filhos como forma de castigá-los.
O levantamento foi feito em 2010 e divulgado no mês passado pelo NEV (Núcleo de Estudos da Violência), da USP. O mesmo estudo foi elaborado em 1999. Embora o percentual dos que dizem ter sido agredidos na infância tenha caído, o índice ainda é considerado alto por especialistas.
Berenice Giannella, presidente da Fundação Casa, acredita que a falta de estrutura familiar é um dos fatores determinantes para facilitar a aproximação entre menores e o crime organizado. “Existe um contexto de desagregação familiar: pais que não têm controle sobre seus filhos somados à inconsequência do adolescente”, explica.
O desembargador Antonio Carlos Malheiros questiona: “É mais fácil admirar o pai bêbado, ausente, ou o traficante armado e cheio de poder?”.
Os dois menores entrevistados pelo DIÁRIO nesta reportagem não conheceram seus pais. As mães deles eram ausentes: uma está presa e a outra, morta. “Nunca tive carinho de pai. Não sei o que é isso, não. Acho que vou fazer diferente quando tiver o meu pivete”, diz Diogo (nome ficíticio).
CAMPANA
É a função mais baixa na biqueira. São adolescentes que ficam escondidos na “quebrada” e avisam quando a polícia está chegando. A remuneração gira em torno de R$ 300. Os traficantes costumam ajudar os menores com R$ 10 para alimentação, além de refrigerantes e chocolates.
VAPOR
É quem vende a droga nos pontos de tráfico. Tem a responsabilidade de tratar bem a clientela e é cobrado caso suma dinheiro ou drogas. O “salário” é de R$ 500 a R$ 700 por semana, mas pode ser maior se as vendas superarem a expectativa do “patrão”.
ABASTECE
Também conhecido como “avião” é quem fornece as drogas para a biqueira. O cargo se divide em dois turnos. Ele também acumula a função de recolher o dinheiro dos vapores e conferir se as finanças estão em ordem. Ganha até R$ 700, mais 10% da droga vendida, dependendo da política interna da biqueira.
GERENTE
Cargo de confiança, ocupado por quem já tem uma “caminhada” junto aos traficantes. Essa pessoa tem relacionamento estreito com o dono da biqueira e a função de administrar os funcionários para que tudo corra bem. Controla os gastos e lucros, esconde as drogas, controla o fornecimento e faz pagamentos. Ganha até R$ 2 mil por semana. Se controla mais de uma biqueira é chamado de gerente-geral.
PATRÃO
É o dono da biqueira. Ele decide os salários, compra a droga, repassa o dinheiro para outros setores do crime organizado, dá ajuda para familiares de presos e “fortalece” os irmãos na cadeia. O lucro dele varia conforme o fluxo dos pontos de venda de drogas sob seu comando.
MICHEL*, 17, internado na Fundação Casa
“Na minha ficha constam sete passagens, mas eu me lembro de 12. Já corri de polícia, já levei tiro, apanhei. Tudo isso traficando. Antes de ser do movimento, queria uma bicicleta. Na biqueira, consegui a melhor de todas. Já comprei tênis de marca de playboy noia por R$ 5. Os caras sobem o morro atrás de pedra, vendem até a mãe para conseguir. Eu era patrão, usava roupas de marca, pegava baladas, muita mulher. Mas no crime são três caminhos: cadeira de rodas, cadeia ou cemitério. Na minha cama, fico pensando: o boy continua viciado, mas livre. E eu que só vendia? Tô aqui. Preso.”
DIOGO*, 17 ANOS, interno da Fundação Casa
“Fumei o primeiro baseado aos 13 anos. Com 14 estava na biqueira. Comecei vendendo porque minha mãe tinha um conhecimento no crime. Em dois anos, eu era gerente-geral na Favela Buraco Quente, nas Águas Espraiadas. Comprei uma casa e deixei equipada. Tinha TV de plasma e cama box. Eu passei muita fome quando era moleque e o que eu mais gosto é de comer tudo o que tenho vontade. Quando não estou preso, como o dia inteiro. Perdi as contas de quantas pessoas roubei, mas só senti pena uma vez. Não fui para o crime por emoção, não. É necessidade. A gente entra nessa vida porque precisa.”
extraido do site: http://www.redebomdia.com.br
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